
Na Páscoa brasileira, dois protagonistas dividem a cena à mesa: o bacalhau salgado, vindo do Atlântico Norte, e os ovos de chocolate, embrulhados em brilho e nostalgia.
O que eles têm em comum? Talvez muito mais do que se imagina. E, ao mesmo tempo, quase nada. Enquanto um carrega séculos de fé, o outro simboliza a renovação doce da vida.
Juntos, revelam a alma múltipla desse feriado: espiritual, familiar, comercial — e profundamente cultural. Fora da mesa, continuam fazendo história!
O fiel amigo: a história do bacalhau
A relação entre Portugal e o bacalhau remonta ao século XV, durante as grandes navegações. Foi nos bancos pesqueiros do Atlântico Norte que os portugueses encontraram o Gadus morhua, o autêntico bacalhau, ideal para salgar, secar e conservar por longos períodos. Essa durabilidade tornou o peixe indispensável para longas viagens marítimas — e também para os dias de abstinência religiosa impostos pela Igreja Católica.
Do século XVI ao XVIII, mesmo após perder o domínio sobre a pesca para ingleses e franceses, Portugal consolidou sua identidade alimentar em torno do bacalhau salgado e seco, importado em grandes quantidades e presente em lares de norte a sul.
A travessia do Atlântico
No Brasil colonial, o bacalhau já era consumido, especialmente em centros portuários. Mas sua presença se intensificou com a chegada da corte portuguesa em 1808. No Rio de Janeiro, a família real não apenas trouxe hábitos europeus como também os legitimou socialmente.
O bacalhau passou a figurar em banquetes aristocráticos e refeições religiosas durante a Semana Santa. A partir do século XIX, o costume de consumir bacalhau na Páscoa foi se enraizando também entre a população urbana de classe média — como sinal de tradição, religiosidade e prestígio.
Do Estado Novo à tradição brasileira
No século XX, o ditador português António de Oliveira Salazar consolidou o bacalhau como símbolo nacional. Em campanhas que exaltavam a fé, a simplicidade e a identidade do povo, o peixe passou a ser chamado de “fiel amigo” — nome que ecoa até hoje em famílias portuguesas e luso-brasileiras.
No Brasil, o costume se firmou principalmente no Sudeste e no Sul, mas também se espalhou de forma adaptada para outras regiões. Em alguns lugares, peixes locais substituem o bacalhau, mas o espírito da tradição permanece: uma refeição especial, sem carne, que marca a Sexta-feira Santa.
Bacalhau e chocolate: dois símbolos, uma só Páscoa
Como já descrito, o bacalhau representa fé e tradição, ligado à espiritualidade e às práticas religiosas. Em contraste, os ovos de chocolate falam de renascimento, afeto e celebração.
Herdados de antigas tradições pagãs — que já celebravam a fertilidade com ovos decorados — esses símbolos foram absorvidos pelo cristianismo e reinventados pela indústria. No Brasil, os ovos de chocolate surgem em vitrines e gôndolas com tamanhos variados, recheios criativos e embalagens encantadoras. Tornaram-se parte essencial da Páscoa contemporânea, principalmente para as crianças.
Na mesa, bacalhau e chocolate coexistem como espelhos da própria Páscoa: um momento de dualidade entre espiritualidade e festa, entre o sagrado e o doce.
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Receitas com espírito de Páscoa
Seguem duas receitas para quem quer fugir do tradicional e resgatar, não importa a época do ano, esse clima saboroso de Páscoa.
A primeira traz uma releitura moderna; a segunda relembra a criatividade da gastronomia molecular ao unir a tradição do bacalhau com a ousadia do chocolate.
Antes de torcer o nariz para a combinação, sugiro que experimentem. Vale muito a pena — e surpreende positivamente!
Bacalhau confitado com espuma de azeite e purê de batata-doce
Rendimento: 4 porções
Tempo de preparo: 2 horas
Nível: Avançado
Ingredientes
Para o bacalhau:
- 4 lombos de bacalhau dessalgado (180g cada)
- 500ml de azeite de oliva extravirgem
- 4 dentes de alho fatiados
- 1 ramo de alecrim
- 1 ramo de tomilho
- 1 folha de louro
Para a espuma de azeite:
- 150ml de azeite de oliva suave
- 100ml de caldo de legumes
- 1 folha de gelatina incolor sem sabor
- Sal a gosto
Para o purê de batata-doce:
- 2 batatas-doces médias (cozidas e descascadas)
- 2 colheres (sopa) de manteiga
- 1/2 xícara de creme de leite fresco
- Sal e noz-moscada a gosto
Modo de preparo
- Bacalhau confitado:
Aqueça o azeite com o alho, alecrim, tomilho e louro (cerca de 80 °C). Mergulhe os lombos de bacalhau e cozinhe lentamente por 30 a 40 minutos. Reserve. - Purê de batata-doce:
Amasse as batatas, misture com a manteiga e o creme de leite. Tempere com sal e noz-moscada. Mantenha aquecido. - Espuma de azeite:
Hidrate a gelatina. Aqueça o caldo de legumes e dissolva a gelatina nele. Misture o azeite e leve à geladeira por 30 minutos. Bata com mixer para formar espuma na hora de servir.
Montagem
Sirva o purê como base, acomode o lombo de bacalhau por cima e finalize com a espuma de azeite. Decore com brotos, ervas frescas ou pó de azeitona para um toque moderno.
Terra e mar com chocolate
Ingredientes
Para o nhoque de mandioca:
- 500g de mandioca cozida e amassada
- 1 gema
- 2 colheres (sopa) de farinha de trigo (aproximadamente)
- Sal e noz-moscada a gosto
Para o ragu de bacalhau:
- 300g de bacalhau dessalgado e desfiado
- 2 colheres (sopa) de azeite de oliva
- 1 cebola roxa picada
- 1 dente de alho
- 1/2 pimentão amarelo em cubinhos
- 1 tomate sem pele picado
- Coentro ou salsa a gosto
Para a redução de chocolate:
- 50g de chocolate amargo 70%
- 100ml de vinho tinto seco
- 1 colher (sopa) de melado de cana
- 1/4 de pimenta-dedo-de-moça (sem sementes e picada finamente)
- 1 colher (chá) de vinagre balsâmico
- Sal e pimenta-do-reino a gosto
Modo de preparo
- Nhoque de mandioca:
Misture a mandioca amassada ainda morna com a gema, o sal, a noz-moscada e a farinha, aos poucos. A massa deve ficar firme, mas macia. Modele os nhoques e cozinhe em água fervente até subirem. Reserve. - Ragu de bacalhau:
Refogue a cebola, o alho e o pimentão no azeite até murchar. Acrescente o bacalhau e refogue rapidamente. Junte o tomate e cozinhe por 5 minutos. Finalize com coentro ou salsa. - Redução de chocolate:
Em fogo baixo, reduza o vinho com o melado, o vinagre e a pimenta-dedo-de-moça até encorpar (cerca de 1/3 do volume). Desligue o fogo, junte o chocolate picado e mexa até derreter. Ajuste sal e pimenta.
Montagem
Sirva 4 a 5 nhoques por porção, com o ragu de bacalhau por cima. Finalize com fios da redução de chocolate. Decore com brotos, flor de sal ou pétalas comestíveis.
Notas do Chef:
- A pimenta-dedo-de-moça foi ajustada para trazer leve picância. Se preferir menos ardor, adicione apenas uma pitada ou use pimenta-de-cheiro.
- Raspas de laranja ou limão-siciliano podem ser um excelente toque aromático se quiser um perfil mais fresco para a redução.
- As fotos que ilustrariam essas receitas foram feitas por mim no sítio. Houve um acidente: deixei a vasilha cair e a espuma se esparramou pela cozinha. Na finalização, usei um molho de azeite aromatizado com ervas.
- Os fios de chocolate também derreteram enquanto tentava tirar as fotos — mas o sabor, posso garantir, ficou maravilhoso.