O narrador é o personagem (inventado pelo escritor) que conta a história da qual participa. Sabemos que ninguém é cem por cento confiável ao contar um conto sem aumentar um ponto. Se o romance é uma obra de ficção, será repleto de falsidades em falas e gestos, mesmo que queira reproduzir somente a verdade e nada mais.
Os narradores não confiáveis revelam a lacuna entre o que é aparente e a realidade, mostram como distorcemos ou ocultamos a realidade e não são, necessariamente, mal-intencionados.
No caso de As Benevolentes, de Jonathan Littell, ganhou o maior prêmio literário da França, em 2006, num rastro de polêmicas. Maximilien Aue, o narrador, é um homem letrado, filho de mãe francesa e pai alemão, que aprende desde pequeno a mascarar os desejos (homossexualidade, sadomasoquismo e a relação incestuosa e obsessiva com a irmã), até se alistar na SS e terminar como inspetor dos campos de extermínio. Aue não vê o mal como exceção nem o restringe a grupos específicos de raça, cor, crença, nacionalidade ou extração social — sem que isso o isente da culpa. É a sua reinterpretação da “banalidade do mal” a que se referiu Hannah Arendt a propósito de Eichmann.
- As Benevolentes
Autor: Jonathan Littell
Tradutor: André Telles
Editora: Alfaguara (2007)
Um outro narrador não confiável é o mordomo Sr. Stevens, em Vestígios do Dia. Ele não é mau, mas toda a sua vida se baseia na supressão ou evasão da verdade sobre si ou sobre o outro. Ele preserva a mística do mordomo inglês perfeito, que só “nós da Ilha podemos ser”. Num estilo contido e mordomês, revela aspectos sombrios da trajetória política do ex-patrão, um nobre simpatizante do nazismo.
- Vestígios do dia
Autor: Kazuo Ishiguro (Nobel de Literatura, 2017)
Tradutor: José Rubens Fonseca
Editora: Cia da Letras
Se você não leu, assista ao filme no Max:
Diretor: James Ivory
Elenco: Anthony Hopkins, Emma Thompson
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E, claro, temos Bento de Albuquerque Santiago, o Dom Casmurro, cuja fraqueza e falta de personalidade, nos confunde e joga em nosso colo a história de uma só versão, a dele, com o julgamento e condenação prontos e resolvidos. Machado traz um narrador eloquente, que não nos deixa cair no sono. Bentinho vai de ingênuo a cruel e cínico. Um exemplo de genialidade na construção de personagens.
- Dom Casmurro (publicado em 1900)
Autor: Machado de Assis
Várias editoras
Não se deixe enganar pelas aparências. Não é porque a pessoa sabe contar uma história, que ela vai ser verdadeira e confiável. E vale para todos os campos do conhecimento, desde a morte de Cleópatra, até as eleições municipais.
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