“De nada vale a pressa do remador.
O remo pede licença ao rio.
E o barco espera que a água o abrace.”— Provérbio de Madziwa
No mês de junho, lemos #noclubedolivrodaofício o último lançamento do escritor moçambicano Mia Couto, ‘A Cegueira do Rio’. Do lado de cá do mar oceano, pouco sabemos da história da África. Nada nos diz respeito que não seja o nosso quintal, alguém já disse.
Mia Couto apresenta uma estrutura narrativa e um estilo literário ricos e complexos, característicos do autor, vencedor de vários prêmios internacionais e possível candidato ao Nobel. Aqui, ele faz um ousado caminho num romance histórico sobre as guerras em Moçambique, cobrindo o período das primeiras décadas do século 20, com centenas de milhares de mortes.
O romance é marcado pela técnica das “falas de” (diversos personagens narram diretamente suas perspectivas). A estrutura fragmentada e multifacetada desafia a ideia de uma narrativa única e autoritária, comum na historiografia colonial, dificultando a adesão do leitor.
Ao apresentar pontos de vista contraditórios e subjetivos, Couto força o leitor a questionar a “verdade” e a reconhecer a complexidade dos eventos, cruciais para a descolonização da perspectiva. Em contextos coloniais, o conhecimento e a verdade são narrados sempre pelos vencedores. Ao dar voz direta aos personagens africanos, a obra desafia a hierarquia, validando as experiências subjetivas.
A Cegueira do Rio é uma crítica contundente ao colonialismo, não apenas em suas manifestações explícitas de violência e exploração, mas também em sua capacidade de moldar e distorcer a identidade e a história.
Mia Couto desconstrói as verdades estabelecidas, quando relata uma epidemia de agrafia (os europeus se esquecem da escrita), que serve como uma poderosa metáfora para a fragilidade do poder colonial e a falência de um sistema baseado na escrita e no controle da informação. Como diz o outro: quem sabe mais, pode mais.
A obra enriquece a literatura lusófona com a sua marcante prosa poética, com a incorporação da oralidade e dos provérbios africanos e o uso inovador do realismo mágico. Cria um universo literário único que desafia as convenções ocidentais e celebra a riqueza da cultura moçambicana. O fluxo constante do rio Rovuma (metáfora principal) e sua capacidade de transformação refletem a natureza dinâmica da identidade e da história.
A Cegueira do Rio é relevante no cenário contemporâneo ao abordar temas universais como a memória, o esquecimento, a busca por identidade e a resiliência humana diante da adversidade. A obra de Mia Couto é um convite à reflexão crítica sobre as narrativas históricas dominantes e a importância de ouvir as vozes silenciadas, contribuindo para uma compreensão mais rica e matizada do passado e do presente.
Durante a discussão no grupo de leitores, pudemos pensar no quanto não nos colocamos no lugar do outro. Existem vozes (muitas) que estão sendo caladas (a cada minuto). Existem duas ou três guerras, do outro lado do mundo, sendo transmitidas ao vivo e em cores (os mísseis vistos de longe parecem fogos de artifício). Devem existir muitas outras guerras menores, não relevantes para cobertura midiática. De qual cegueira padecemos?
Tudo isso não nos tira o sono. E nós vamos festejar nos arraiais, arrumamos as malas para as férias que se aproximam e, ai de mim, fiz até doce de laranja azeda!
“Não há viajante solitário
Os caminhos são feitos de gente.”— Provérbio de Milepa