
Silvio Tendler partiu, e com ele se vai um dos mais fiéis guardiões da memória nacional. Tendler foi um historiador que trocou a pena pela câmera, os arquivos pelas salas de projeção.
Durante cinco décadas, registrou não os vencedores, mas os vencidos; nunca focou nos que escreveram a história oficial, mas os que tiveram seus sonhos interrompidos pela violência política, pelo exílio, pela morte precoce.
Em suas mãos, o cinema tornou-se um gesto de rebeldia contra o esquecimento, uma convocação à reflexão crítica de um país que insiste em não se olhar no espelho.
De Jango a JK – Um sonho interrompido, de Marighella às séries televisivas que formaram gerações, sua obra ultrapassou a condição de filme para se tornar documento, prova, testemunho.
Cada imagem de Tendler desenvolvia-se como um ato de justiça. Ao devolver voz a João Goulart, Juscelino Kubitschek, Carlos Marighella, Tendler disputava o presente, lembrava-nos de que não há futuro possível sem confrontar os escombros da própria história.
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Chamado de “cineasta dos sonhos interrompidos”, foi também pedagogo da esperança. Seu cinema era rigoroso como uma pesquisa, mas vibrava como poesia.
Conversava com estudantes, com militantes, com cidadãos comuns, e tive a honra de conviver com ele por quase duas décadas, em cada sessão, ensinava que conhecer é resistir.
Até quando se aventurou em títulos inesperados, como “O Mundo Mágico dos Trapalhões”, o fez com a mesma consciência de que o cinema é linguagem popular e, por isso mesmo, revolucionária.
Sua vida pessoal foi a tradução exata daquilo que filmava. Em 2011, uma doença grave o deixou tetraplégico.
A interrupção parecia definitiva. Mas ele, fiel ao seu próprio destino, renasceu: reaprendeu movimentos, voltou a filmar, reafirmou que a resistência é uma forma de vida.
Sua trajetória foi retratada em “A Arte do Renascimento”, como quem prova que não há silêncio capaz de deter a força da memória.
Hoje, sua ausência pesa. Mas seus filmes vão permanecer como bússolas para um Brasil que precisa entender seus fracassos para sonhar novamente.
Assistir a Tendler é ouvir as vozes sufocadas, reconhecer que a memória é sempre um ato político. Sua morte encerra uma vida, mas não fecha as cortinas para sua obra porque ela continua em cada projeção, debate, em principalmente em cada espectador transformado.
Silvio Tendler não pertence apenas ao cinema. Pertence à memória de um povo. E a memória, quando se recusa a morrer, é o que mantém um país vivo.
Sobre o autor: Fabrício Correia é crítico de cinema e historiador. Integra a Academia Brasileira de Cinema e a União Brasileira de Escritores. Foi diretor do Sindicato Nacional da Indústria Cinematográfica Brasileira, na gestão de Dudu Continentino e fundador e secretário-executivo da Frente Parlamentar Mista em Defesa da Indústria Audiovisual e Cinematográfica Brasileira.