As ondas bidimensionais são aquelas que perturbam, por exemplo, um lago calmo formando círculos causados por uma pedra que cai num determinado ponto.
Um descritivo monótono para falar de um evento poético de natureza lúdica.
Gosto de relacionar esse efeito com a arte e a cultura, um pequeno ponto quando acionado dispara ações que se contaminam, se movimentam, se alargam e seguem ampliando essa ação inicial. Um gesto decidido e planejado.
Essa energia de contaminar o entorno, no caso da arte e cultura, tem necessidades específicas para manter suas ondulações.
No lago, uma pedrinha afunda e dispara uma reação de círculos que dura um tempo e acaba. Se queremos que esse efeito permaneça, várias pedrinhas devem ser jogadas ou essa superfície permanecerá como um espelho refletindo Narciso se contemplando e se apaixonando pelo que vê. Fascinado e melancólico.
“É que Narciso acha feio o que não é espelho”.
Caravaggio e Caetano Veloso, 1597 e 1978, apresentaram seus Narcisos que tem origem na mitologia grega, grande símbolo da vaidade e insensibilidade. O termo chegou na psicologia, literatura, artes plásticas, música e nome de flor. Da palavra grega narke de entorpecido, como entorpecente, simboliza pura individualidade, nada além de si mesmo.
O Narciso contemporâneo está bastante conectado com as redes sociais, cultua a própria imagem e tem traços de cinismo em relação ao coletivo.
As pedrinhas são necessárias porque conseguem quebrar a imagem narcísica.
É preciso fragmentar seu reflexo para a vaidade excessiva entrar em crise e deixar respirar a criatividade que já pulsa em todos os círculos e territórios.
Um gesto intencional estilhaça essa monotonia descortinando a riqueza de possibilidades a serem descobertas, acessadas, divulgadas e conectadas.
Outras características nocivas como arrogância, altivez e dificuldade de ouvir críticas são hoje peculiares dessas personas, traços de personalidade.
Cada momento histórico tem suas personagens repetitivas, óbvias e monótonas que atuam num processo maligno encapsulado na superfície do espelho, da água.
Na arte e cultura, gestos certeiros que disparam ondas favoráveis inesperadas e surpreendentes necessitam ter continuidade. Cada interrupção significa destruir o esforço ondulatório construído e toda contaminação favorável que ele gerou em outras camadas. Assim, perdem-se as ondulações, os entusiasmos vividos, os desejos de construção coletiva, os sonhos e os investimentos.
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Por exemplo, uma ação cultural que se inicia provoca em determinado grupo, comprometimento, esforço, entusiasmo para continuar e agregar mais pessoas para essa ação. Esse grupo vai amadurecendo e se reconhecendo capaz inclusive de incentivar outros que iniciem outros processos e assim os círculos vão se alargando conscientes de suas referências iniciais.
É um sistema que nos permite sonhar pois é nesse lugar que nos reconhecemos capazes de criar coletivamente. As experiências criativas na arte e cultura impactam nosso dia a dia e nos tiram do ciclo mimético do cotidiano.
E isso é cada vez mais importante para nossa saúde mental. Nossa necessidade de adaptação ao mundo contemporâneo nos desafia diariamente. Os sistemas nunca foram seguros e atualmente isso está escancarado. As mudanças são muito rápidas, nossos corpos e mentes não acompanham essa velocidade.
Nos dizem que o futuro será muito diferente mas não sabemos quanto, nem como e nem quando.
Muitas perguntas, dúvidas, incertezas, somados são a receita para angústias e temores. Precisamos de coragem e determinação para enfrentar ou sermos reativos com ódio e desejo de destruir o diferente alimentados por um sistema que só comporta certezas radicais.
Talvez traga conforto se blindar na ignorância.
A arte é uma ameaça a esse sistema.
A arte é um sistema provocador de mudanças, uma manifestação e através dela podemos experimentar possibilidades, satisfazer nossa curiosidade, reconhecer nosso lugar e principalmente o do outro.
Somente uma pedrinha não faz verão.
Lagos alheios com pedrinhas pululando constantemente nos frustram se vemos que nosso lago está congelado em Narciso. Sabemos que precisamos de doses maiores e constantes desses círculos nos contagiando de novas possibilidades, novos encontros e reflexões, fortalecendo o coletivo.
Uma representação simbólica das ações artístico-culturais nos inspirando, nos motivando diante da complexidade da vida contemporânea.
“A arte exerce possibilidades coletivas necessárias para criarmos novos sentidos ao nosso mundo em colapso.”