
Os colecionadores de vinil estão na superfície novamente, assuntos envolvendo discos viralizam nas redes sociais e feiras de discos reúnem um público interessado, com jovens curiosos que compartilham o mesmo desejo de gerações passadas e fãs dispostos a acumular parcelas no cartão de crédito para adquirir vinis como “Chega de Saudade” (1959), de João Gilberto, encontrado à venda por até R$ 4,8 mil plataforma Discogs.
Esse site (há também um aplicativo) onde você pode pesquisar, encontrar a ficha técnica, catalogar, comprar ou anunciar discos é uma indicação de Felipe Goulart (39), para quem coleciona ou ensaia uma coleção.
A dele começou em 2016 com os desapegos do pai de uma amiga. “Ele estava dando, praticamente. Vendeu cada um por R$ 5. Eu comprei uns 50 discos”, conta. Goulart pagou uma merreca por LPs que custavam uma merreca, mas outros considerados valiosos, estimados em até R$ 300 naquela época.
Quase dez anos depois, sua coleção, hoje já na casa dos 800 discos e alguns cifrões, não foi o que o introduziu na música, mas é o que há algum tempo tem lhe garantido raridade no trabalho de DJ. Ele faz seu nome agora em São Paulo, onde a discotecagem com vinil está estabelecida como tendência em casas de shows, restaurantes e outros espaços onde há preferência pelo analógico na hora de ouvir um som.
Em uma madrugada recente, o rapper Thaíde e a atriz Marisa Orth surfaram numa onda de nostalgia e groove enquanto o DJ discotecava na Casa de Francisca, eleito o melhor bar de música ao vivo pela Folha de S. Paulo em 2025. A dupla tietou algumas das joias da sua coleção, entre elas “Domingo, Menino Dominguinhos” (1976), e se empolgou com “Acabou Chorare” (1972), dos Novos Baianos, e uma edição de “A Volta de Secos & Molhados” (1972) assinada por Ney Matogrosso.
Em São José dos Campos, sua cidade natal e onde escolhe morar evitando o cotidiano caótico da capital, DJ Goulart abriu shows de artistas e bandas renomados, como Skank, Lulu Santos, Adriana Calcanhotto e o próprio Ney Matogrosso — ocasião que lhe rendeu o autógrafo. Sua figura é reconhecida na cena pelo pioneirismo no movimento disco local, ainda em progresso.
“Em SP as casas já têm estrutura, você chega só com sua maleta de discos, a agulha e toca. Aqui em São José você tem que levar o toca-discos, toda a estrutura de som, acaba sendo mais difícil”, explica.
Os discos, a agulha e o fone são o barro da cerâmica que o DJ molda em som. Para os eventos, ele costuma levar uma mala contendo cerca de 60 a 70 vinis, com um repertório diferente em cada ocasião. A pureza do som dos LPs é a essência, portanto sem camadas adicionais, autotune, efeitos, ecos ou reverbs, três coisas marcam o desempenho de Goulart: sua seleção, a agilidade para trocar de álbum e o conhecimento das faixas de cada disco.
Ele considera possuir uma missão: estimular as pessoas a escutar uma variedade de gêneros musicais. Por isso, na balada do DJ se ouve jazz, instrumental, bossa nova, forró, choro, funk soul, reggae. “É uma batalha minha”, define. Seu toca-discos é a arma que usa contra o engajamento crescente do sertanejo e de outros gêneros artificializados nos últimos anos, abastecidos por músicas para trends do TikTok e fins comerciais.
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Ele facilmente poderia ser considerado um guerrilheiro da música, no bom sentido. Aproveitou sua influência, por exemplo, para desenvolver a programação musical oficial de São José com o projeto Jazz no Galpão, iniciativa da Fundação Cultural Cassiano Ricardo (FCCR), do qual é curador. “Tenho sorte do Tom Freitas [presidente da FCCR] ter acreditado no projeto. Ele tem visto resultado. Tem dado público, o pessoal pede”.
Goulart é responsável por trazer aos palcos da cidade, e com uma verba pequena, ele revela, músicos de altíssimo nível — talvez não tão conhecidos do grande público, mas consagrados entre quem sabe ler as partituras e consequentemente belas descobertas, como o trompetista Anderson Della Vechia, o trombonista Joabe Reis, o baterista Daniel Pinheiro e o gaitista Gabriel Grossi.


Goulart compartilha o protagonismo nesse movimento de guerrilha com contemporâneos que detém trabalhos originais e importantes para a música local: ele vibra com o sucesso de artistas e grupos como o Baile da Bonita, que homenageia a black music e tem eventos 100% sob o som do vinil; o DJ Cirilo, organizador do Samba Maneiro, que toca brasilidades vintage no vinil; a retomada da Orquestra Joseense, de volta à vida desde 2021 após ter o financiamento municipal interrompido; e também com os incansáveis esforços pela preservação do patrimônio musical de Raquel Aranha, coordenadora do Centro de Documentação Musical de São José dos Campos (CDM SJC).
“A Raquel é admirável. Eu falo para ela: ‘Queria ter essa energia, essa esperança que cê tem'”, brinca e confessa em seguida: “Eu tô na resistência, mas sou mais pessimista.”
Por uma perspectiva externa, é improvável que o pessimismo seja a impressão deixada pelas iniciativas de Goulart e o impacto que elas têm, ainda que sejam restritos a um microcosmo no interior de São Paulo.
Em seu quintal, voluntariamente, o DJ também organiza apresentações para pequenos grupos de “amigos e amigos de amigos”, oportunidades raras para assistir concertos intimistas por artistas de grandes palcos, como Marcel Powell, violonista franco-brasileiro, filho do ícone Baden Powell.
Mesmo cobrando pelas entradas, as despesas acumuladas de várias edições, incluindo cachês dos músicos, estrutura, aperitivos, drinks e convites visualmente deslumbrantes como se fossem capas de discos (com 31,5cm x 31,5cm), deixariam qualquer um desgastado. Ele, no entanto, quer mais enquanto puder fazer.
A casa térrea na Vila Betânia, bairro sossegado para onde se mudou há um ano e meio, não trouxe só a liberdade de encher o quintal, mas de arrumar metros quadrados para seu trabalho que não encontrava morando em apartamento, ouvir música a qualquer hora do dia em qualquer volume, deixar seus equipamentos montados, uma bateria no meio da sala e tirar seus vinis do armário, agora exibidos em uma estante amarela que é a primeira coisa que te chama a atenção ao passar pela porta.

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