
Mauricio de Sousa é um desses raros homens que pertencem à alma do país. Não está preso ao tempo nem à biografia. Vive no imaginário de todos nós, na infância que ele ajudou a construir e no afeto que transformou em linguagem. Aos 90 anos, continua a desenhar o Brasil.
É uma honra poder chamá-lo de amigo. Trabalhar com ele é conviver com a delicadeza em estado puro, é testemunhar o milagre cotidiano da criação. Em Caçapava, no sítio onde a tarde parece mais demorada e o ar mais limpo, criávamos juntos.
Eu escrevia, ele desenhava, e meus filhos participavam, como se o mundo fosse um estúdio a céu aberto. Entre as árvores, o riso e o barulho do vento, nasciam personagens que agora vivem entre palavras e traços: Isabelzinha, Amália, Dilinho, e alguns outros que surgiram da mistura de sonho e ternura.
Lutero, meu filho, quando mais novo, estava sempre por perto, com a inseparável Fifi, sua pequena flor de pano, companheira das primeiras invenções. Um dia, ela desapareceu no meio do pomar, e procuramos juntos eu, ele e Mauricio, entre as folhas, os bancos, os brinquedos. Mauricio, com sua serenidade habitual, olhou para o horizonte e disse: “Nada se perde quando foi criado com amor”. Essa frase ficou gravada em mim como uma lição para a vida inteira.

O sítio é dos territórios de imaginação de Mauricio, aqui na RMVale, onde o cotidiano se transforma em arte. Mauricio nunca me falou sobre seu processo de criação; simplesmente criava, com a naturalidade dos que respiram. Habita nele uma espécie de fé silenciosa, uma confiança de que o bem sempre encontra uma forma de permanecer.
Das tardes de trabalho nasceram dois livros que guardo como parte de mim: “O Pequeno Grande Doador” e “Um Milagre para Isabel”. O primeiro celebrava a generosidade, o segundo transformava a fé em aprendizado, narrando a história de Santa Isabel, padroeira de sua cidade.
Ele, que raramente empresta seu traço a histórias de outros autores, aceitou ilustrar essas com o entusiasmo de um menino. Era como se o amor que moveu a santa fosse o mesmo que o guiava no traço.

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Tive a alegria de acompanhá-lo também em seus caminhos de reconhecimento. Quando decidiu candidatar-se à Academia Paulista de Letras, foi a mim que coube a missão de ser o emissário de sua inscrição.
Ele estava em viagem à China e com a ajuda de Sidney Gusman, um fiel escudeiro, de meu e-mail, enviei sua carta de candidatura ao presidente José Renato Nalini. Fiz isso com a emoção de quem leva uma oferenda. Aquela carta era a assinatura de um artista que havia se tornado parte da alma literária do Brasil.
Recordo ainda dos chás na Academia Paulista, com nossas saudosas amigas, Anna Maria Martins e Lygia Fagundes Telles, as conversas sem pressa, o riso contido, o brilho nos olhos quando falava de suas histórias e de seus leitores. Em meio à solenidade das paredes centenárias, sempre trouxe o frescor da juventude eterna. É o menino de Limoeiro entre imortais, e todos o ouvem com o respeito que se reserva aos que criaram algo maior do que sua biografia.
Há episódios que revelam seu caráter generoso. Quando eu era secretário de Cultura de Caçapava, ele doou um carro de sua coleção ao acervo de Roberto Lee, dirigido por Alice Takeda, sua amada companheira, gesto silencioso, nobre, movido apenas pelo desejo de preservar a memória brasileira. Era seu modo natural de contribuir: discreto, essencial, sem anúncio.
Mauricio me ensina todos os dias que a genialidade se mede pela bondade, e o trabalho verdadeiro nasce da fé no outro. Ele vive como cria, com pureza, coerência e leveza.
Aos 90 anos, permanece o mesmo menino que acreditava que desenhar era uma forma de melhorar o mundo. Ele representa o melhor de nós: o riso que resiste, a ternura que educa, a ética que não precisa de discurso. Mauricio de Sousa é o traço que une gerações, o artista que fez da infância uma pátria.
Mauricio, meu amigo, meu mestre, obrigado por existir. O Brasil é mais bonito porque você o desenhou.
Fabrício Correia é escritor, jornalista e professor universitário. Cocriador de personagens com Mauricio de Sousa para seus livros infantis “O Pequeno Grande Doador” e “Um Milagre para Isabel. Presidente da Academia Joseense de Letras, entre 2022 e 2025, integra a União Brasileira de Escritores.