Imagine uma criança tentando pescar num rio quase seco, enquanto, do outro lado do mundo, uma enxurrada arrasta casas e plantações em minutos. Essas cenas, aparentemente opostas, fazem parte do mesmo enredo, a água está perdendo o equilíbrio.
Segundo o relatório “State of Global Water Resources 2024”, da Organização Meteorológica Mundial (WMO), 60% dos rios do planeta apresentaram níveis fora do normal no último ano, metade em seca severa, metade em excesso. O que antes era exceção, agora é o novo normal, ou seja, extremos climáticos se tornaram rotina, e a segurança hídrica, uma corrida contra o tempo.
O documento revela ainda que apenas um terço das bacias hidrográficas do mundo manteve condições normais em 2024, enquanto dois terços sofreram desequilíbrios severos. Foi também o sexto ano consecutivo em que o ciclo global da água apresentou distorções significativas.
As consequências são visíveis, secas prolongadas castigaram a América do Sul e o sul da África, afetando plantações e reduzindo drasticamente os níveis dos rios. No Brasil, o Rio Negro, um dos principais afluentes do Amazonas, atingiu em 2023 o nível mais baixo dos últimos 100 anos, um alerta preocupante sobre a vulnerabilidade de ecossistemas antes considerados resilientes.
A crise também avança silenciosamente nas geleiras do planeta, que perderam massa pelo terceiro ano consecutivo, comprometendo as reservas naturais de água doce que abastecem bilhões de pessoas. E 2024 entrou para a história como o ano mais quente já registrado, com temperatura média global 1,55 °C acima dos níveis pré-industriais, intensificando a evaporação e agravando os eventos extremos.
O estudo da WMO é um alerta global. Ele mostra que 2024 foi o ano mais quente já registrado, com temperatura média 1,55 °C acima da era pré-industrial. Glaciares continuam derretendo pelo terceiro ano consecutivo, elevando o nível dos oceanos e reduzindo as reservas de água doce.
O relatório reforça uma verdade desconfortável, a crise climática é, antes de tudo, uma crise da água. E quando ela se agrava, o impacto recai sobre todos da agricultura à energia, da indústria à saúde pública.
O Brasil detém cerca de 12% da água doce superficial do planeta, segundo a Agência Nacional de Águas e Saneamento Básico (ANA). Mas isso não nos torna imunes. De acordo com dados do MapBiomas Água (2023), o país perdeu 15% da superfície coberta por água nas últimas quatro décadas. E mais, estima-se que 114 mil quilômetros de rios brasileiros apresentem níveis críticos de poluição, resultado do despejo de esgoto, rejeitos industriais e agroquímicos.
No bioma mais populoso, o da Mata Atlântica, vivem mais de 120 milhões de pessoas, das quais milhões sofrem com intermitência no abastecimento, enchentes urbanas e contaminação por metais pesados e efluentes. Somos o país da abundância hídrica, mas também da desigualdade no acesso e na gestão.
A frase, presente no relatório da WMO, é simples e certeira: “não se gerencia o que não se mede”. Sem dados, não há ação. Sem monitoramento, não há prevenção. A ausência de medição sistemática das águas superficiais e subterrâneas impede que governos e empresas planejem com antecedência, transformando eventos previsíveis em tragédias anunciadas.
Por isso, o tema hídrico precisa ocupar o centro das estratégias ESG. Água não é apenas uma variável ambiental, é um indicador de governança, de justiça social e de resiliência climática. Empresas que ignoram a gestão da água expõem-se a riscos operacionais e reputacionais; já aquelas que investem em tecnologias de regeneração e eficiência estarão na vanguarda da sustentabilidade real.
O relatório da WMO é mais do que um diagnóstico, é um espelho. Ele mostra o preço da inação e a urgência de colocar a água no coração das políticas públicas, das estratégias corporativas e do comportamento individual.
O futuro da economia, da saúde e da própria vida depende da água. E talvez o maior desafio do nosso tempo seja simples de enunciar, mas difícil de cumprir, cuidar da água como quem cuida do próprio futuro.
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