Jane Goodall morreu. Cientista, defensora dos animais, consciência. Um rosto sereno que nos lembrava, com firmeza, que a vida é uma só trama e que cada vez que um fio se rompe, todos nos desfazemos um pouco.
Nos anos 1960, à beira do lago Tanganica, na Tanzânia, uma jovem sem diploma, mas cheia de coragem sentou-se na floresta e mudou o destino da ciência. Com o olhar paciente e um caderno no colo, viu nos chimpanzés aquilo que muitos se recusavam a enxergar: eles fabricavam ferramentas, organizavam caçadas, cuidavam dos filhos, choravam seus mortos. Eram próximos demais para caber nas antigas fronteiras entre “nós” e “eles”. Desde então, a humanidade nunca mais pôde se pensar da mesma forma.
Quase sessenta anos depois, perto dos noventa anos, atravessou oceanos para estar no Brasil. Era um tempo de virada: o fim de um ciclo de devastação política e moral que havia deixado a Amazônia em agonia. Sua chegada tinha a força de um gesto simbólico, como se o mundo inteiro nos lembrasse que a floresta não é apenas patrimônio nacional, mas respiração do planeta.
No Pará, sobrevoou o Vale do Tapajós e viu o escândalo da cor açafrão: rios arruinados, quilômetros de destruição pelo garimpo. Disse apenas: “nunca esquecerei”. E naquele murmúrio havia uma sentença contra todos nós. Porque o que ela via não era um acidente, era o retrato de uma civilização que insiste em trocar futuro por migalhas de ouro.
E, mesmo assim, falava de esperança. Não uma esperança adormecida, mas uma esperança ativa, que exige mãos calejadas. “Estamos num túnel escuro. No fim, há uma estrela. Mas é preciso rastejar, escalar, enfrentar obstáculos.” Sua filosofia sempre esteve na resistência: esperança não é espera, é luta.
Eu a encontrei em São Paulo, na UNIBES Cultural, durante essa viagem, em 2023. Ali estavam comigo meus quase vinte anos de caminhada no Partido Verde, a fundação da Rede Sustentabilidade, meus anos de estudo em Geografia na Univap, sempre guiado pela defesa da casa comum. Quando, com meu inglês imperfeito, lhe disse: “Thank you for making us more human”, ela sorriu. E naquele sorriso havia mais do que cortesia: havia a confirmação de que a nossa luta; seja política, acadêmica, existencial, faz parte de algo maior.
Jane Goodall, primatologista, a testemunha do futuro. Veio ao Brasil quase ao fim da vida não para se despedir da coexistência, mas para nos entregar sua chama. A morte, neste caso, não apaga nada: intensifica. Porque agora cabe a nós sustentarmos o que ela simbolizava, a coragem de enxergar, a ternura como ética, a esperança como disciplina. Hoje tornou-se estrela, aquela mesma que dizia brilhar no fim do túnel. E se tivermos coragem, será por essa luz que continuaremos a caminhar.
Fabrício Correia é escritor, jornalista, professor universitário e ativista. Foi presidente do Partido Verde em São José dos Campos, um dos fundadores da Rede Sustentabilidade e é licenciado em Geografia pela Universidade do Vale do Paraíba.
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