Eu nunca soube explicar o que é ouvir Gal Costa. Porque não é só música, nunca foi. É como se a vida fosse uma sala escura, e de repente alguém acendesse um fósforo; pequeno, rápido, mas que ilumina tudo e consome todo o ar. Gal foi esse fósforo. E quando apagou, ficou a marca do fogo.
A vi pela última vez, na RMVale, em Campos do Jordão. Junho de 2022, mais ou menos quatro meses antes de sua morte. Frio cortando os ossos, a serra coberta de neblina, e de repente ela. Apenas Gal.
A voz ainda intacta, como se o tempo tivesse medo dela. Naquela noite, sem saber, me despedi. Saí do teatro com a sensação de que tinha visto um milagre, e milagres sempre vêm com lágrimas escondidas.
Mas a apresentação que me quebrou, de verdade, foi aqui em São José dos Campos. Tênis Clube lotado, o chão vibrando, e Gal no show “O Sorriso do Gato de Alice”, dirigido por Gerald Thomas, cuspindo “Vaca Profana” como se fosse um manifesto contra todos nós.
Aquele grito atravessou meu corpo. Foi como ser exposto: minhas vergonhas, meus desejos, meus medos, tudo estava ali. Ela cantava e eu não sabia se queria chorar, dançar, fugir ou me entregar. E de repente, os seios à mostra, de peito aberto.
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Gal representa na minha vida tudo o que não se domestica. A coragem de viver sem pedir licença com a ternura escondida na fúria de coexistir. Agora que ela faria 80 anos, penso no que transborda. O que ficou é a ferida. A cicatriz de quem foi atravessado por uma voz e nunca mais conseguiu se recompor.
Gal Costa me ensinou que viver é cantar mesmo quando a garganta sangra. Que amar é saber que está se expondo ao ridículo e à beleza ao mesmo tempo. Que morrer não é o fim, quando a memória ainda arde. Gal é a dor mais bonita que já conheci.
Sobre o autor: Fabrício Correia é crítico de cinema, escritor, jornalista e produtor cultural. Foi diretor regional do Sindicato Nacional da Industrica Cinematográfica Brasileira, gestão Dudu Continentino e fundador da Frente Parlamentar em Defesa da Indústria Cinematográfica e Audiovisual Brasileira. Integra a União Brasileira de Escritores e a Academia Brasileira de Cinema.