
A alcachofra, com sua aparência majestosa e coração tenro, é mais do que um simples vegetal: é uma flor comestível, colhida ainda em botão, antes que suas pétalas se abram em tons de roxo. Parte da família Asteraceae, a mesma dos cardos e girassóis, ela se tornou um ícone da gastronomia mediterrânea.
Originária do norte da África e difundida pelo Mediterrâneo, a Cynara scolymus atravessou séculos entre lendas, banquetes e rituais culinários — e ainda consegue fazer você arrancar pétala por pétala com paciência olímpica.
Curiosidade: Na Roma Antiga, quem não apreciasse alcachofras podia ser visto como pouco
refinado. Rejeitar uma flor dessa era quase uma ofensa à etiqueta dos banquetes!
A minha história com a alcachofra
A história da alcachofra, que atravessa mitos, tradições e cozinhas, segue viva em nossas recriações e memórias.
Já se passaram muitos anos, mas a imagem permanece vívida: andando pela casa de Maria Antonieta, em seu refúgio campestre próximo ao exuberante palácio de Versalhes, deparei-me com um jardim. Flores roxas, parecendo pequenos espinhos distribuídos sobre uma base verde, com pétalas mais duras, chamaram minha atenção. Fiquei parado apreciando algo até então desconhecido por mim.
Assim, conheci as flores das alcachofras, que antes seriam colhidas e transformadas em pratos memoráveis e que, hoje, se apresentam aos turistas durante a época da floração —provavelmente se divertindo ao ver minha cara de “Como se come isso?”.
A alcachofra já fazia parte do meu cardápio, mesmo que preparada de forma simples, apenas cozida. Sentávamos à mesa e lentamente íamos desfolhando pétala por pétala, sentindo o gosto do seu coração, temperado com um pouco de sal e, às vezes, azeite, até podermos repartir o coração entre os degustadores.
Anos depois, na Itália, fui apresentado oficialmente ao coração de alcachofra e passei a entender que se tratava de uma verdadeira iguaria, tratada com toda a pompa que merece — sem falar na paciência necessária para comer cada pétala sem fazer cara feia.
Ao longo dos anos, a alcachofra passou a ser encontrada com mais facilidade em mercados e em versões mais simples, como em saladas, pizzas e restaurantes por quilo. Infelizmente, muitas vezes sem o apreço que esta flor merece.
Antiguidade: prestígio e lendas
Na Antiguidade, gregos e romanos já conheciam suas virtudes. Hipócrates recomendava a alcachofra para aliviar problemas digestivos — perfeita para aqueles banquetes gregos onde ninguém queria sofrer depois.
Plínio, o Velho (23–79 d.C.), naturalista romano e autor da obra Naturalis Historia, descreveu a planta como um alimento de prestígio, reservado às mesas mais ricas. Sua enciclopédia, escrita em 37 volumes, provavelmente continha mais informação do que qualquer menu de restaurante de hoje — e com menos emojis.
Curiosidade: Plínio dizia que a alcachofra “abre o apetite e aquece o estômago”.
Em outras palavras: era o petisco perfeito antes de enfrentar o Senado romano.
Mas o que mais seduz é a lenda ligada ao seu nome. Segundo a mitologia grega, Zeus se apaixonou por Cynara, uma bela mortal de cabelos prateados. Encantado, levou-a para o Olimpo, transformando-a em deusa.
No entanto, Cynara sentiu saudade da vida terrena e, às escondidas, desceu para visitar sua família. Ao descobrir, Zeus puniu-a severamente: transformou-a em flor, rígida e espinhosa por fora, mas macia e delicada por dentro. Assim nasceu a alcachofra, símbolo de desejo e vulnerabilidade.
A alcachofra é como um segredo de família: protegida por camadas firmes, mas guardando no coração um sabor que vale a espera.
Renascimento e expansão pela Europa
Durante o Renascimento, no século XVI, Catarina de Médici foi uma das grandes responsáveis por difundir a alcachofra na França. Ao casar-se com Henrique II, levou consigo não apenas cozinheiros italianos, mas também o hábito de comer alcachofras em abundância — e alguns cortesãos provavelmente se perguntaram se ela estava apaixonada pelo rei ou pelo aperitivo.
Na Itália, consolidaram-se receitas icônicas como a carciofi alla giudia, tradição judaico-romana de fritar alcachofras inteiras até ficarem crocantes, e a carciofi alla romana, recheadas com ervas e cozidas lentamente em azeite e vinho branco.
Na França, ganharam ares de refinamento, servidas com manteiga derretida, vinagretes ou molhos elaborados — e algumas críticas históricas sugerem que eram melhores apreciadas longe de olhares curiosos.
A alcachofra no Brasil
A alcachofra chegou ao Brasil trazida por imigrantes europeus, sobretudo italianos e portugueses, no final do século XIX e início do século XX. Acostumados a cultivar e consumir a flor em suas terras natais, esses imigrantes encontraram no clima do estado de São Paulo condições ideais para o plantio.
A adaptação foi bem-sucedida principalmente na variedade roxa-de-são-roque, que se tornou a mais difundida no país — e, felizmente, sem espinhos capazes de assustar os novos moradores.
Curiosidade: Conta-se que a primeira alcachofra no Brasil foi confundida com um “pequeno cardo”, seu parente espinhoso. Por pouco não virou planta medicinal em vez de estrela da mesa gourmet!
O cultivo começou em pequenas hortas familiares, tanto para consumo doméstico quanto para venda em feiras locais. Com o tempo, regiões como São Roque e Piedade (SP) se consolidaram como polos produtores, organizando festas típicas e rotas gastronômicas que ajudaram a popularizar a alcachofra entre os brasileiros.
Nas últimas décadas, o cultivo se expandiu para áreas serranas de clima ameno, como Santo Antônio do Pinhal e Campos do Jordão (SP) e Gonçalves (MG). Nesses lugares, produtores locais abastecem restaurantes e festivais, com destaque para o tradicional evento realizado pelo restaurante Dona Pinha, em Santo Antônio do Pinhal.
Além disso, há registros de produção em menor escala no Rio Grande do Sul, sempre ligada a comunidades de descendência europeia.
Hoje, embora ainda seja considerada um produto de nicho, a alcachofra faz parte do calendário gastronômico do país, celebrada em festivais regionais e presente em mercados especializados. Sua trajetória no Brasil reflete, assim, a força da imigração europeia e a capacidade de adaptação dessa flor mediterrânea ao nosso território — e ainda prova que até um vegetal “espinhoso” pode conquistar corações.
Um festival só da alcachofra
Felizmente, alguns restaurantes continuam na tradição europeia, italiana e francesa. Na nossa região, ninguém melhor que a chef Anouk Migotto, do excepcional Donna Pinha, poderia manter essa tradição.
Em Santo Antônio do Pinhal, teve início o 23º Festival da Alcachofra do restaurante Donna Pinha, que se estenderá até o dia 2 de novembro. Mais de 15 opções, preparadas com carinho e técnica apurada, certamente encantam e encantarão todos os visitantes.
O evento ainda conta com um atrativo especial: uma edição em homenagem ao Prato da Boa Lembrança, com o título “Cleópatra – Deusa da Alcachofra”.

Fomos comprovar essas delícias. Um espaço agradável, amplo e bonito, com funcionários simpáticos em todos os setores, tornou nossa experiência gastronômica ainda mais especial.
A descrição dos pratos, assim como a entrevista com a chef Suzy explicando sobre o preparo da alcachofra, pode ser acompanhada no Instagram @cozinhasemchef.dr.sidneysredni — e declaro que nenhum espinho foi maltratado durante a degustação.
O festival não é apenas uma celebração gastronômica: é uma experiência que une história, tradição e criatividade. Cada prato revela a versatilidade e a sofisticação da flor, mostrando que a alcachofra é muito mais do que um ingrediente — é uma estrela à mesa, capaz de encantar todos os sentidos.
Entre técnicas clássicas e releituras modernas, os visitantes se deparam com a elegância intrínseca da alcachofra: sua textura delicada, seus sabores sutis e a riqueza de aromas que transportam do Mediterrâneo ao Brasil.
É um convite a apreciar não apenas a comida, mas a história e a arte de cozinhar, provando que, mesmo espinhosa por fora, a alcachofra possui um coração que conquista e fascina.
Ao final, sair do festival é levar consigo mais do que sabores: é carregar a memória de uma flor que, séculos depois, continua a encantar paladares e corações, reafirmando seu lugar de destaque na mesa e na história da gastronomia.
Algumas boas receitas para te inspirar
Carciofi alla Giudia: especialidade judaico-romana criada no gueto de Roma no século XVI. As alcachofras são limpas e fritas em duas etapas — primeiro em fogo médio, depois em alta temperatura — até abrirem como flores douradas. O resultado é uma iguaria crocante por fora e macia por dentro, servida comoantepastoo.
Carciofi alla Romana: tradição familiar romana. As alcachofras são recheadas com alho, salsinha e hortelã (mentuccia romana), depois cozidas lentamente em azeite e vinho branco. O prato é delicado, aromático e macio, valorizando o coração da flor e as ervas frescas.
Artichauts à la Barigoule (França): prato clássico da Provença. As alcachofras são cortadas ao meio, recheadas com legumes, ervas aromáticas e às vezes pequenos pedaços de bacon, depois cozidas lentamente em vinho branco e azeite. Uma explosão de sabor delicado e elegante, perfeita para amantes da culinária francesa.
Tartare de Alcachofra com Limão e Azeite Trufado (moderno): receita contemporânea de alta gastronomia. O coração da alcachofra é picado finamente e temperado com raspas de limão, azeite trufado, flor de sal e micro verdes. Servido frio, este prato une simplicidade, frescor e sofisticação, mostrando como a alcachofra pode ser reinventada na cozinha moderna.