Por que choramos a morte de alguém que nunca conhecemos pessoalmente? Porque certos seres humanos não pertencem apenas ao seu seio social. Pertencem ao mundo, à coletividade, ao tempo que transformam com sua presença e ao amor que despertam pela forma como vivem — e morrem.
Preta Gil morreu. E com ela se apagou, por um instante, um tipo raro de luz: a luz de quem vive com coragem, entrega e verdade até o último suspiro. Aos 50 anos, a filha de Gilberto Gil, artista por si mesma, mulher intensa e imperfeita como todas as grandes, partiu deixando o Brasil com um nó na garganta e, mais ainda, com uma certeza diante dos olhos: a nossa própria finitude.
Preta Gil morre aos 50 anos após batalha contra câncer no intestino
Mas o que é, afinal, essa tal finitude? É o limite que contorna a vida como a moldura de um quadro. É o fato indiscutível de que estamos de passagem, de que um dia – cedo ou tarde – a última palavra será dita, o último abraço será dado, o último olhar lançado ao céu. Preta sabia disso. E não se escondeu.
Ela expôs seu câncer, seu corpo machucado, sua fragilidade. Não por vaidade ou piedade, mas porque escolheu viver sua dor à luz do sol, como uma bandeira contra o tabu da doença, do sofrimento e da própria morte. Ela nos ensinou que a vida é feita também dos dias sombrios, das vísceras, dos hospitais, dos medos. E que nesses momentos, mais do que nunca, precisamos uns dos outros.
A morte de Preta não se trata apenas da perda de uma artista, é também sobre isso, mas fundamentalmente um lembrete brutal de que a existência é breve. De que o tempo nos escapa entre os dedos. De que os amores não ditos, as reconciliações adiadas, os perdões não concedidos — tudo isso pode virar silêncio antes que tenhamos tempo.
E, no entanto, mesmo diante da finitude, há beleza. Há beleza no corpo que se despede com dignidade, na mulher que canta apesar da dor, em Gilberto Gil, o pai, em silêncio, confiando à música o que o luto não sabe nomear, nas redes de afeto que surgem quando o fim se anuncia.
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Preta viveu como quem sabe que está morrendo — e morreu como quem sabe que viveu bem. A morte dela não deve ser vista como tragédia, mas como revelação: a de que não importa quanto tempo temos, mas o que fazemos com ele. Ela dançou, cantou, amou, rompeu padrões, lutou por corpos livres, por mulheres potentes, por amores plurais. E mesmo doente, fez de sua batalha um gesto de amor coletivo.
Quando perdemos alguém assim, algo nos acorda por dentro. De repente, percebemos que não temos tempo para mediocridades. Que precisamos amar mais. Perdoar mais. Dançar mais. Que precisamos nos olhar no espelho com mais doçura e menos cobrança. Que precisamos abraçar a vida com a coragem de quem sabe que ela tem fim.
A morte da minha amada Preta nos obriga a parar — para lembrar que tudo que negamos, evitamos, retardamos… nos custa vida. E que morrer não é o oposto de viver, mas parte do mesmo mistério.
Preta se foi. Mas deixou um chamado: não vivam pela metade. Não escondam suas dores. Não adiem suas verdades. Vivam, como ela viveu, com o coração escancarado, a voz afinada e a alma à flor da pele.
Que a finitude da vida — com tudo que ela nos arranca — seja também o motor da nossa transformação. E que Preta, minha linda, nome que virou verbo e estado de espírito, onde estiver, siga cantando, agora em outra frequência, lembrando ao mundo que viver vale a pena, mesmo além do depois.
Fabrício Correia é escritor, jornalista, musicoterapeuta e apaixonado por Preta Gil
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