Motivo de festa era quando as refeições viravam ideia bem antes de ir para o fogão. A mesa posta por completo e o almoço um substantivo composto por entrada, prato principal e sobremesa. Viviane Gonçalves, a chef Vivi, foi uma criança exigente no que diz respeito à tradição de comer.
Caipira de São José dos Campos, ela não dispensa um bom arroz com feijão, mas na infância se encantava com preparos que fugiam do trivial. Sua sorte é que ao redor contava com figuras que costumavam se esmerar na cozinha.

Seu pai, um “grande gourmet”, como descreve, foi quem lhe deu o primeiro livro de culinária. Mas especialmente por meio das receitas da mãe, avós e tias, é que entendeu que comida era ritual, beleza e festejo.
“O papel das mulheres na minha família foi fundamental para o início da minha carreira. Aquele almoço de final de semana… minha mãe foi uma cozinheira não de todo dia, mas de festas, de preparar almoços especiais. Então essa é a minha memória. Todo sábado a casa cheirando comida boa, minha mãe pesquisando, pensando no menu, tentando sempre buscar receitas novas”.
A entrada profissional de Vivi na cozinha foi em 1985 e tem endereço na rua Luiz Jacinto, no centro de São José, onde ficava o saudoso italiano Perequim. A pizzaria não apenas moldou Vivi para as cozinhas do mundo, mas também para o mundo das cozinhas. Aprendeu da massa e molho à administração e atendimento ao cliente.
Nos tempos de Perequim surgiu também o desejo de cair na loucura do restaurante próprio. A chef conciliava o trabalho na pizzaria com as vendas de doces para fora. Conseguiu uma bela receita de quindão – o carro chefe de 16 pedaços -, uma outra boa de mousse e começou a traçar a independência financeira.
O desejo era tanto que apressou as conquistas. Em 1992, com apenas 24 anos, a chef abriu o Cabala Bar e Café em São José, que se tornou ponto cult na cidade. Foram cinco anos de sucesso com o Cabala até decidir tocar seu novo projeto: o Coelho e o Cabrito. Era uma pequena chácara no bairro dos Freitas, na velha estrada para Campos do Jordão, onde praticou a essência farm to table antes mesmo que viesse a ganhar nome e virar conceito.
Criava as próprias galinhas, plantava hortaliças, desenvolveu um laço com os produtores locais. Foi a primeira experiência mais profunda de Vivi com a filosofia da cozinha sustentável.
“Comprei uma chacrinha junto com a Gabriela com ajuda do pai dela, seu Gabriel. Isso tudo foi antes de eu sair de São José. De sair para o mundo. Fomos sócias no Cabala e depois fomos juntas para a Inglaterra e para a China”.
Bristol, onde brota a sustentabilidade
A ideia de se jogar no exterior foi soprada por um frequentador do Cabala que virou amigo, o engenheiro Mauri, que na época trabalhava no INPE (Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais). Ele coordenava os engenheiros que viajavam para a China envolvidos com as produções de satélites em parceria entre os países.
“Nesse momento ele surgiu, ‘Vivi, e porquê não a China?’. Isso ele me falou eu acho que em 1994, e eu só aceitei em 2000. Mas ficou aquela coceira, aquela vontade de conhecer o mundo”.
O objetivo então tornou-se chegar ao país de proporções continentais e gastronomia milenar. Mas antes era necessário se preparar para tamanho desafio. Por isso Vivi escolheu a Inglaterra como seu primeiro destino internacional. Queria aprender inglês. Ela pensou que em seis meses fechava sua vivência britânica. Ficou quatro anos.
Em Bristol, cidade do sudeste da Inglaterra, formou-se na área de catering & hospitality no City of Bristol College – que prepara alunos para atuarem em eventos e bufês. Longe dos Freitas, a filosofia da sustentabilidade ganhou mais bagagem quando trabalhou como sous-chef do badalado restaurante Bocanova. Lá aprendeu o processo de renovação diária do menu, do aproveitamento total dos ingredientes, além da estratégia de definir as compras dos insumos de acordo com as estações do ano.
Era uma postura contrastante com muito do que Vivi já tinha visto na vida, uma crítica às grandes redes de alimentos e suas relações com o meio ambiente e a ecologia. Uma filosofia que levaria para a China e de lá em diante.
China, entre sucesso e desilusões
“Cheguei em Pequim dia 24 de março de 2004 e foi um boom. Foi um sucesso. Eu cheguei no momento certo, na hora certa. Ninguém estava fazendo o que eu realmente me propus. Quem estava fazendo a comida ocidental não estava fazendo tão bem, e eu cheguei no momento em que o mundo estava com todos os olhos para o país, que era pré-Olimpíadas”.
Tudo o que Vivi fez de tão bom enquanto esteve na China saiu da cozinha do Alameda, restaurante que montou na capital chinesa. Com decoração minimalista e explorando os vegetais, abundantes por lá, o Alameda foi considerado por três anos seguidos o melhor restaurante de cozinha internacional de Pequim pela revista That’s Beijing.

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A produção era brasileira contemporânea, mas muitos dos conceitos de preparos tinham como origem a Ásia. Na China Vivi descobriu novas maneiras de fazer o que sempre fez.
Sua comida ganhou outras texturas, crocância, o “wok” (técnica com base no uso de uma panela típica chinesa), a cocção rápida. Seu estilo de cozinha teve importantes acréscimos, mas manteve a essência. Porém, suas construções política e social esbarraram na muralha.
“Foram quatro anos e eu resolvi voltar para a Inglaterra. Comecei a questionar… não era só dinheiro na minha vida, mas direitos humanos e como realmente a China trata esse ponto. Para mim, todos os seres merecem todo o respeito. Eu tenho um trabalho muito grande de sustentabilidade e nesse momento começou a me incomodar muito”.
A volta à Inglaterra durou dois anos e fez parte de um período meio sabático que também se estendeu por mais alguns meses na Andaluzia, região sul da Espanha.
ChefVivi, um belo pequeno espaço na Vila Madalena
Vivi volta para o Brasil em 2010 e passa cerca de um ano pesquisando a cozinha em capitais brasileiras, tentando também entender o que se passava pela sua terra tantos anos depois. Nesse tempo teve grandes experiências quando estagiou por breve período nos estrelados Maní, da chef Helena Rizzo, e D.O.M., do chef Alex Atala, ambos em São Paulo.
De volta em casa, ela precisava de uma nova cozinha própria. Que tivesse o seu jeito de enxergar o mundo que a acolheu, a sua tradição em respeitar e aproveitar os ingredientes.
O terreno foi escolhido na Vila Madalena, na capital. Na rua Girassol, número 833, criou as raízes do restaurante ChefVivi. Um espaço que não precisa de tradução, simples assim que nem o nome.
Buscando a perfeição no novo projeto, a caipira conquistou prêmios na capital paulista unindo comida, sustentabilidade e arte. Pelo COMER & BEBER da Veja São Paulo foi eleita chef revelação em 2012 e chef do ano em 2019, a primeira a conseguir essa dose dupla de premiações.
A metodologia da troca diária de menu que aprendeu em Bristol hoje é parte consolidada na identidade da chef. As receitas do restaurante mudam quase que diariamente.
Entre as poucas presenças que integram a rotina do ChefVivi está a da própria Vivi. Isso que ela ainda atua como chef do conceituado Restaurante Emiliano e tem na manga da dólmã outros projetos autorais. Largar as panelas faz parte de um projeto que ainda não apareceu no horizonte. Ela segue como criança, a cozinha alimenta a alma e permanece motivo de festa.
“É uma vida que precisamos nos instigar constantemente, porque eu acho que quando eu parar realmente eu vou envelhecer. E eu não quero isso tão cedo. Minha trajetória já são 35 anos, somando desde o Perequim, e eu quero percorrer muito mais ainda”.
Esta matéria faz parte da série especial “Made in Sanja”, produzida pelo Portal SP Rio+, que celebra a população de São José e traz histórias de pessoas que destacaram Brasil afora. Nesta primeira temporada, foram produzidas quatro reportagens que contaram a vida e a trajetória da artista Leilah Moreno, do jogador profissional de FIFA Klinger Castro, da chef Viviane Gonçalves e do estudante Pedro Serafim.
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