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Categoria: Da janela do Helbor

Livros de madeira de Egidio Rocci reabertos para falar de poesia e estética

Redação spriomais • Publicado em 30/07/2024, às 17:27 • Atualizado em 30/07/24, às 16:59

São José dos Campos tem uma nova confraria. Vinhos? Não! Uma certa “gente estranha” está ligada à proteção e leitura de livros. Normal? Espera! Estou falando de livros… de madeira.

Os confrades fizeram seu primeiro encontro, na semana passada, para apreciar, fazer odes a livros… de madeira! Isso mesmo. Livros que são objetos de arte, esculturas, belezas que param em pé, muito além de qualquer estante ou biblioteca.

Os confrades, bibliófilos também de sonhos, foram chegando ao atelier da artista Clélia Maluf, localizado numa esquina meio camuflada na Vila Ema, ancorada em um mar de aquarelas, para celebrar uma condição que agora os une: amantes das artes e seus objetos, todos têm pelo menos um exemplar da série de livros do artista Egidio Rocci (1960-2015).

Tamara Andrade, que foi mulher do artista, doou 16 livros para admiradores da obra de Egidio, pessoas que podem cuidar bem desses livros, acarinhá-los (foi o que fez a artista plástica Pitiu Bomfin com seu exemplar durante o encontro), dar continuidade à sua tarefa, à sua vida estética, garantindo voz a seu implícito discurso. Precisarão, talvez, algum dia, livrá-los das mandíbulas de esfomeadas brocas.


Doação de acervo à FCCR

Com a morte de Egidio, Tamara ficou com a difícil tarefa de cuidar de um acervo muito grande, proporcional à inventividade do artista. A distribuição dos livros a deixa muito feliz, mas não resolve toda a equação.

Na reunião da semana passada, Tamara comemorava também o aluguel de um depósito para as peças maiores de Egidio. O sonho para a proteção e exibição do acervo continua. Tamara conta que, para isso, já se reuniu com Tom Freitas, presidente da Fundação Cultural Cassiano Ricardo (FCCR). Quer doar oficialmente o acervo à Fundação.

Tom Freitas acredita que o “sonho bom” dará certo e que falta apenas discutir questões burocráticas. À espera do avanço prático das negociações está o confrade dos livros de madeira e galerista Paulo Henrique Rosa (Galeria Poente), que já ofereceu curadoria à Fundação para a movimentação da coleção.

No atelier generoso de Clélia, estavam todos ali reunidos, bebericando, folheando pesados livros, abrindo os corações, página por página, para resgatar memórias do artista, um verdadeiro “escafandrista urbano”, segundo definição de Angela Peyerl, curadora da sua exposição virtual Mar(Ítima).

Caçapavense de nascimento, foi em São José dos Campos, a partir de 1998, que Egidio montou seu atelier de mais fôlego. Durante um período, trabalhou simultaneamente como bancário e nas bancadas, com suas madeiras e objetos esculturais.

No banco, teve muitas vezes de enfrentar um ambiente hostil às artimanhas artísticas, como lembra o amigo mosaicista Evaldo Eras, outro confrade. Mas nunca desistiu de procurar seu material em caçambas de lixo, lojas de móveis, em pilhas de objetos descartados, num aproveitamento algo inusitado (vale aqui lembrar também do artista joseense Régis Machado e suas perambulações atrás de gavetas descartadas e reaproveitadas com tino concretista).

Leia mais da coluna Da janela do Helbor: Ai que saudades do sagu da minha mãe!

Personagem inquieto, Egidio trafegou pela Publicidade (cursou a ESPM), escreveu poemas, roteiros de cinema, desenhou HQs, fez ilustrações para os jornais Folha de São Paulo e O Valeparaibano (1989-1990), estudou teoria da arte, fotografia, até encontrar afinidades com objetos tridimensionais, como conta Tamara ao apresentar o site do artista.

A respeitada crítica de arte Angelica Moraes, curadora de sua primeira exposição individual na Galeria de Arte Berenice Arvani, em São Paulo, em 2004, celebrava então o “talento emergente”. Era a entrada de Egidio no mercado nacional de artes. Em 2005, estava no catálogo da prestigiosa Exposição Arco, em Madri, na Espanha.

Todos estavam então interessados na capacidade do artista, aos moldes dos ready-mades de Marcel Duchamp (1887-1968), de “arrancar” os objetos de seus usos domésticos, esvaziá-los de sua função corriqueira. “Apropriados para um uso poético”, escreveu Angelica de Moraes. (O que é um armário dos anos 60, garimpado a dedo numa loja de móveis, vitrine depois recheada de ventiladores dos mais variados modelos, todos eles em pleno funcionamento?)

Os livros de Egidio são literalmente de madeira, as folhas são de madeira. Poucas páginas de conteúdo forte. Alguns têm incrustações de outros materiais, uma “marchetaria” de madeiras recicladas. (No seu atelier, uma placa moderna é capaz de encontrar um encaixe perfeito num pé de mesa Luís XV.)

Um dos livros de Egidio, por exemplo, abriga um lápis de carpinteiro vermelho, outros mostram ossatura de pedaços de metro metálico, daqueles mais usados por pedreiros. E pregos, tintas raspadas, sobrepostas, dobradiças, lombadas artesanais adesivas.

Uns livros estão na madeira crua, outros ainda exibem roupas de outras valsas, trazem cicatrizes. O artista sempre mergulhou fundo à procura de seu material de trabalho, daí o “escafandrista”, mergulhando, vasculhando caçambas, visitando brechós de móveis usados.


Processo autofágico, de reciclagem

Num processo autofágico, Egidio sempre usava o que restava de outros trabalhos no atelier, para novas obras, numa lição, Tamara lembra bem, contra qualquer tipo de desperdício. Uma obra terminava e a “sobra” virava outra obra. E é por isso que ela, emocionada ao falar na confraria, celebra a nova vida desses livros.

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José Guilherme Ferreira

José Guilherme Ferreira

Escritor, jornalista e editor, José Guilherme Rodrigues Ferreira é formado pela Escola de Comunicações e Artes da USP. Foi editor-chefe do Diário do Comércio e participou de equipes nas redações da TV Globo, Agência Estado, Agência Folha, Jornal da Tarde e Globo Rural. É autor de Vinhos no Mar Azul, agraciado em 2009 com o Gourmand World Cookbook Awards, e de O Almofariz de Deméter.



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